19 de jun. de 2017

PENUMBRA

O dia foi amargo, como o café e os cigarros que me ajudaram a atravessar as horas. Estive meio perturbado durante a semana, com um frio inexistente além das paredes da minha casa, com sensações que nunca foram minhas cúmplices.

Sendo um pouco mais direto, escrevo esta mensagem como um pedido de ajuda, na esperança de que sua mente sempre firme e racional me auxilie a afastar os fantasmas que meus medos têm moldado em todos os cantos e sombras dos cômodos. Me afastei do álcool a fim de traçar uma trilha mais clara em meus pensamentos, entretanto, fora a abstinência e seus castigos, adquiri apenas a certeza de que nenhuma sobriedade é suficiente para explicar a noite que antecede este relato.

Com o crepúsculo do último dia útil da semana passada, veio a melancolia que o ócio me reserva. A saudade e a tristeza provocadas pelo fim do meu casamento acentuaram os meus problemas com a bebida e o fumo. Assim, as horas fora do trabalho reservo para os bares, que quando enfim são fechados me forçam a voltar para a cama. E foi justamente o caso da madrugada em questão.

A lua já estava próxima do horizonte e uma neblina fina banhava o meu jardim. Entrei cambaleante pelos fundos da casa, não antes de perder bons minutos procurando o meu molho de chaves e me sentir um tolo ao notar que as perdera no pub do qual voltara. Após pressionar a porta, e finalmente passar pela área de serviço, notei uma silhueta no meu escritório. Um vulto que não fugiu quando fixei o meu olhar.

Armado com um escovão de madeira que tateei naquela penumbra, me esgueirei pelo corredor tanto quanto a ebriedade permitiu. Como as habilidades motoras não se estendem após tantas doses de conhaque, tropecei. O movimento fez o piso de madeira estalar, fazendo com que o meu algoz se desse conta da minha presença. “Pai?!”, indagou o homem com uma voz que me causou estranheza, um profundo desconforto. Certo de que se não um louco, o invasor acreditava falar com um outro possível criminoso, pensei o mais rápido que pude em uma ação efetiva. Nos encaramos assim durante alguns poucos e terríveis segundos, que terminaram quando avancei contra a figura desferindo um golpe com o cabo do escovão.

Percebo que a esta altura o acontecido seja suficiente para servir de explicação para o meu presente incômodo, porém, o desfecho não foi menos que confuso. Acontece que acordei no fim da manhã, desorientado e assustado, esperando pelo pior. Me encontrava jogado no chão do escritório como se estivesse acordando de um desmaio. Na casa, ninguém mais. Dos meus bens, nada menos. Tudo parecia tratar-se de um sonho.

Investiguei todos os cantos da casa, e quando enfim satisfeito, também as redondezas do quarteirão. Nada parecia validar a violenta experiência que eu passara. Tudo parecia se encontrar exatamente no lugar onde deveria. Acredito que se não fosse o caso da porta dos fundos se encontrar aberta, o que se justificou por eu não a fechar ao entrar, eu provavelmente me convenceria de ter passado por uma forte alucinação. Seria talvez o caso do meu uso excessivo de álcool? A dúvida me fez telefonar para o departamento de polícia, que prontamente enviou uma diligência para o local.

A pouco interessada observação dos oficiais se deu por satisfeita quando notaram que eu ainda sofria os efeitos da embriaguez, e deixaram o local com um  desdenhoso “Acredito que o caso é que o senhor deve ter sonhado com isso”. A vergonha não me permitiu contrariar a sugestão e passei as primeiras horas da manhã extremamente inquieto. De modo que decidi fazer o desjejum quando o Sol já se encontrava no ponto mais alto.

O dia passou morosamente, e a noite soou como a eternidade. Não pude dormir um só minuto, e não me permiti apagar as luzes dos quartos. Ao raiar do dia seguinte, saí de casa e não voltei até não me restar a opção de ter o convívio efêmero dos bares, mesmo que eu não tenha me deixado beber além de sucos e chás. E desta forma a semana correu, me privando o sono e saúde. Com tamanha indisposição faltei o trabalho, gerando interesse dos meus colegas e familiares sobre o que se passava comigo.

Foi assim que na manhã de ontem eu decidi telefonar para os meus pais e contar tudo o que estou dividindo neste momento. Como esperado, a preocupação foi desmedida. Minha mãe já tinha como certo a minha insanidade e perdição. Meu pai, um pouco mais controlado, a acalmou e prometeu me visitar pela noite. Talvez me levasse com ele para a sua casa, onde talvez eu pudesse descansar. Combinado isso, não saí de casa durante a tarde. Pude finalmente deixar as lâmpadas apagadas, e com os raios de luz transbordando pelas janelas mal levantei da minha poltrona. A fadiga acumulada, a claridade e a esperança de melhorar meu juízo, me adormeceram.

Despertei com o ar condensado sendo disparado da minha boca, com frio e sem reconhecer nada além da janela que parecia envolta em uma extensa bruma. O Sol já não me fazia companhia, e a escuridão pesava sobre mim. Levantei assustado, tentando achar um interruptor ou vela. Foi então que me aproximando da porta escutei um barulho que me fez virar assustado. Tal como o reflexo, indaguei: “Pai?!”

Enquanto a palavra percorria minha boca, um calafrio subia a espinha. Paralisado na porta, meus olhos se encheram de lágrimas. E antes de conseguir dizer qualquer outra coisa, ou mesmo me mover, um golpe me acertou. Acordei esta manhã no chão do escritório, e sem saber como agir a partir de agora eu decidi procurar a sua ajuda.