22 de mai. de 2016

Três atos em Silêncio

Alma
Através do ar condensado que saía de sua boca ressecada pelo frio, ele enxergara algumas gotas de orvalho escorrendo pelos cantos de uma das folhas do jardim. Os seus olhos imitavam a cena enquanto a recordava. Percebeu-se imóvel, esperando em silêncio algum conselho das plantas. Uma manhã gelada que não saíra de sua mente, da maneira como são as lembranças que nos marcam sem nos contar o porquê.
O assobio do vento cantarolava uma música diferente dos dias anteriores, em um ritmo descompassado, sem aparente ensaio. Ao fundo ainda se ouvia a mãe, berrando com voz esganiçada de seu apartamento no terceiro andar, o que se não fosse por acontecimentos maiores, seria a pauta central na reunião dos condôminos marcada para a semana seguinte. Não seria a primeira vez que seus escândalos serviriam de munição para os vizinhos.
Através da janela de um dos prédios do bloco adjacente, viu na televisão de tubo um homem de meia idade vestido de rato. “Alcalina?!”, ele disse preenchendo a boca do homem fantasiado. O som não alcançava os seus ouvidos e ainda assim podia escutar cada palavra vinda das memórias de um dia congelado. Um episódio como qualquer outro do seu programa infantil favorito. Seria mais um rabisco esquecido no meio de um borrão, mas o porquê da memória nunca fora um mistério para ele. Caso fosse, deixaria de ser no momento em que ouviu a histeria no andar de baixo. Palavras amargas subindo como fumaça, sufocando como sempre fizeram. A cada instante, a cada murro e deboche vindo da boca drogada da “vadia” - como ele se referia vociferando -, mais um punhado apertado de recordações. Catalogou mais uma vez todas as frases, mesmo que “Devia ter te abortado!” lhe descesse muito pior do que as outras; com muito mais lentidão do que sua mãe gostaria de tê-lo feito descer pelo sanitário.
Do parapeito não se enxergava além da quadra em que estava. Uma neblina mansa, domesticada, cada vez mais densa e baixa, abraçava os prédios. Alguns vultos distantes, fantasmas murmurando sirenes, buzinas. Confundia-se ali a silhueta dos edifícios com a costura das montanhas, o borbulhar de chaleiras com o rugir dos aviões. Um garrote macio apertando aos poucos, perímetro por perímetro, como fungos em uma fotografia mal guardada.


Mente
As pernas trêmulas o lembraram que não mais coçavam sob o jeans. Há algum tempo já não desmontava seu apontador para utilizar a lâmina. Cansara-se de separar um tempo do banho para lanhar-se, de cortar fitas para conter os sagramentos que manchavam suas calças, de fugir das lições de educação física, e das perguntas indelicadas. Cansara-se, como cansara-se de todas as coisas.
Sua boca, serrada em uma expressão sisuda, impulsionava seu lábio inferior para frente. Com o vento, os cabelos, que descolavam de sua cabeça assim como a pele, chicoteavam seus olhos fundos, insones, assim como as maçãs de seu rosto, pálidas sobre o desenho evidente de seu crânio. Como uma cópia borrada feita por papel carbono, ele se apresentava como o reflexo de uma psique débil.
No tempo aberto da solidão de sua rotina, regadas com lágrimas e urina, cultivou pelos anos as sementes insalubres despendidas por sua família. Fazia com que germinassem, quando em momentos de crise esfregava o próprio corpo com os dedos arqueados de suas mãos, como se o processo pudesse abrir as fendas necessárias para libertá-lo. Não podia.


Corpo
Fosse pela atordoante sede de auto flagelo ou a completa falta de bom senso, ele se atirou do quarto andar. Talvez encontrasse a morte rápida caso não acertasse o solo como uma estaca; um tiro vertical que triturou seus ossos mas pouco afetou seus órgãos vitais. Ao efetuar o salto, empregou um pouco mais de força no pé esquerdo, o que inclinou sutilmente o seu corpo e fez com que o seu calcanhar direito tocasse o chão antes de qualquer outra parte. Calcâneo e tálus se partiram como festim - fogos de artifício para uma grande virada; fíbula e tíbia racharam-se, mas mantiveram-se o suficiente para que o resto da perna sentisse toda a energia do impacto. Soltando-se do quadril, seu fêmur o empalou internamente. Suas outras feridas mal seriam sentidas. Sob sua virilha, inchou uma enorme mancha, uma bolsa de sangue procurando espaço para sair. Trincou os dentes, retirando o esmalte dos molares, quase partindo os incisivos em um urro interno animalesco.
A lama daquela manhã chuvosa se alimentava de suas lágrimas e se acomodava em suas narinas. Mantinha-se estático ao soar interior que o impelia a pedir socorro e vibrava todo o corpo sobre o refluxo gastroesofágico. A dor cintilava como a estrela alva, retorcendo-o, fazendo com que o seu suco gástrico esguichasse sobre as folhas do jardim. Fosse o anúncio do inverno ou a perda de sangue, algo o amorteceu. Relaxou sobre uma manta anestésica, e tal qual uma criança fugindo de seus medos sob lençóis em um quarto escuro, adormeceu. E antes que as sensações o deixassem ao eterno descanso, sentiu sobre os lábios a língua áspera de um cão confuso e faminto.

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